terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Experiências em sala de aula.

Estávamos no terceiro bimestre, e eu já havia avisado aos pais nas reuniões anteriores que eu abriria espaço na sala de aula para conversar sobre sexualidade com os filhos deles, meus alunos. Avisei, deixando claro, que o tema era pertinente ao grupo – quarta série – bem como um direito dos alunos, que teriam um local para conversar sobre as transformações do corpo pré-adolescente assim como dúvidas que tivessem.
Desde o período em que dei aula para adultos (2001), compreendi o que Paulo Freire falava sobre o espaço que devemos criar em sala de aula para que ela se transforme num local de cumplicidade e de discussão, e não apenas como um recinto para passar conteúdos.
Livro de ciências aberto, capítulo sobre órgão reprodutor feminino e masculino. Risos na sala, piadinhas, alunos e alunas com aparente pudor....
A aula foi uma das mais interessantes que tive naquele ano, porque havia real interesse dos alunos em discutir aquele tema. As conversas paralelas, que tantas vezes irritam, retornavam ao assunto, em formas de perguntas, antes discutidas com o colega ao lado.
Conversamos desde hábitos de higiene em relação ao pênis ou a vulva – coisas simples, mas parece que faltava um cuidado a respeito, uma orientação – até questões sobre pedofilia e opção sexual.
Um caso de pedofilia ficou famoso na época, divulgado pela imprensa. Algumas questões dos alunos diziam respeito à criança molestada. O que acontecia com ela? Pergunta revertida ao grupo.... vergonha, muitas disseram. E uma criança ou um adolescente com vergonha, o que faz? Silêncio no grupo, e com este silêncio eles responderam essa nova questão.
Temas inseridos e relacionados à sexualidade perduraram durante muito tempo nas nossas aulas. Parece que havíamos aberto um portal onde todas as dúvidas podiam ser explicitadas.
Uma aluna, G., que havia dito que não queria “estudar” os capítulos do livro de ciências referentes aos órgãos reprodutores porque sentia vergonha, me fez a seguinte pergunta, em alto e bom som do fundo da sala:
- Professora, uma mulher com piercing na língua se machuca quando “chupa” um cara?
- Por que você está me perguntando isso? De onde surgiu essa dúvida? – pergunta a professora sabe tudo tentando controlar o espanto e o medo de que esta fala provocasse algum estardalhaço no grupo...
- É que eu vi num filme da band uma mulher com piercing fazendo “aquilo” num homem e aí eu fiquei pensando nisso.
- Ah, deixa eu ver se entendi. Você não queria conversar sobre os capítulos do livro de ciências mas fica vendo filme de madrugada na band!!! Bem, eu não sei se machuca ou não, mas acho que se machucasse isso não seria divulgado num filme. Mas eu sinceramente não sei.
E, fiz um novo retorno a sala sobre a importância de tirarmos as nossas dúvidas conversando, pesquisando em livros, tentando ter um diálogo com os pais, não nos fixarmos somente a boatos, filmes eróticos, diz-que-me-diz de colegas. Lembrei das histórias que ouvia na “minha época” – assumo a velhice quando uso esse termo -, histórias que diziam que menina menstruada não podia lavar a cabeça, que manga com leite causava a morte e que após o primeiro beijo a menina passaria a caminhar de forma diferente (se pensarmos como metáfora, este último até é verdade...).
Mesmo discutindo em sala de aula, me preocupei em trazer leituras e vídeos sobre sexualidade para os meus alunos. Todos assistiram a um documentário feito pela Discovery sobre a gestação, o mesmo que foi retransmitido pelo “Fantástico”, programa dominical da Rede Globo. Vimos, em vários dias, porque ele era sempre entrecortado pelos meus comentários e pelos ricos comentários dos meus alunos. Lembro com carinho de um deles, V., que ao ver a corrida dos espermatozóides em direção ao óvulo comentou, como para si, “parece o universo”. Eu pausei o vídeo e reparei também, contagiada pela poesia daquele sussurro, que os espermatozóides pareciam estrelas enfeitando o universo que era o útero.
Por ordem de chamada –metodologia de professora – todos levaram para casa um livro, “O Planeta Eu – Conversando sobre sexo”, de Liliana e Michele Iacocca, da editora Ática. A leitura não valia nota nem seria cobrada em prova, era pelo prazer de ler e pelo desafio de compartilhá-la com os pais, irmãos, amigos. Um por um levou o livro para casa, ficava um ou dois dias e passava para o colega seguinte. E, a julgar pelo estado do livro, ele foi bem manuseado.
Outra pergunta em sala, desta vez de R., aluna bem participativa:
- Professora, se uma menina der em cima de mim, o que eu faço?
Ah, estamos agora conversando sobre homossexualidade. Interessante destacar que o olhar dos alunos foi diferente do olhar dos professores com quem trabalhei em oficinas sobre Sexualidade Infantil. Nestas, muitos professores demonstraram temer a homossexualidade, vista como um mal que não devia chegar às crianças. Para os alunos, era algo muito curioso, era algo que desejavam entender. Neste ponto, as novelas ajudavam a disseminar uma compreensão. Havia uma novela em voga com um casal de homossexuais, e isto não causava espanto em ninguém da turma.
Resposta dada à aluna:
- R., o que você faria se um garoto te paquerasse bastante e você não estivesse nem um pouco interessado nele?
- Eu diria pra ele que não quero ficar com ele.
- Com a garota é a mesma coisa, você diz que não quer ficar com ela e pronto. Não é simples?
Hoje, relatando, tudo parece simples como aquela resposta. Mas não foi não. Estar na posição de professora e se dispor a criar um espaço para conversar sobre sexualidade não é muito harmônico. Houve vezes em que eu tive que pedir silêncio – diferente de mandar “calar a boca”, pedir que respeitassem as falas dos colegas, fazer um longo discurso sobre respeitar o outro, manejar piadinhas grotescas para que elas seguissem por outras direções...
Ressalto, que naquele contexto, foi possível possibilitar essa experiência. Nem sempre o é, todos temos os nossos pequenos fracassos, que nos recordam sermos humanos e habilitados ao erro (graças aos deuses).

Ana Paula dos Santos Rodrigues

Um comentário:

  1. Ana Paula, meus parabéns pela forma clara e inteligente que discorreu sobre um tema que ainda é o maior tabu da humanidade, e numa sala de aula. Sem dúvida o espaço que foi criado e citado por vc como proposta de Paulo Freire é muito favorável a esse tipo de debate, mas nem sempre é tão simples, como ficou claro com a pergunta da aluna "se uma menina desse em cima dela", pois na hora nossa emoção fica mobilizada e nos paralizamos.
    Realemente quero tirar meu chapéu a vc! :)
    Bjs

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